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Processos da arquitetura
Arquitetura tradicional
I
Pedro P. Palazzo
2023-03-28
<a href="#ordem-e-lugar">Ordem e lugar</a> – <a href="#preferência-temporal">Preferência temporal</a> – <a href="#alegoria-da-cabana-primitiva">Alegoria da cabana primitiva</a> – <a href="#projeto-e-representação">Projeto e representação</a>
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Leitura obrigatória
*História da arquitetura mundial* Introdução
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Leitura sugerida
- Vitrúvio livro I - Ramos e Tourinho, ["O Ensaio sobre a arquitetura, de Marc-Antoine Laugier: um tratado da simplicidade"](https://revistaarqurb.com.br/arqurb/article/view/276) - Fletcher, [*History of architecture* (1961)](https://archive.org/details/historyofarchite0000flet/) vi–xi, 1–11
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1 Traçado regulador
Traçados reguladores típicos para plantas (esquerda) e elevações (direita), segundo Jean-François Gabriel
O croquis lança o traçado regulador com as proporções gerais e a volumetria do conjunto, e conforme o caso a implantação no sítio. Desde já é importate ter um senso da ordem de grandeza dos espaços.
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2 Esboço
Donald M. Kirkpatrick, esboço de uma galeria. Reproduzido em Harbeson, *Study of Architectural Design*
É a etapa mais determinante da sequência; estabelece os elementos de arquitetura e da composição e suas dimensões e proporções específicas em planta, corte e fachada, assim como as proporções entre cheios e vazios e a modenatura que gera o jogo de luz e sombra nas elevações.
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3 Estudo preliminar
Thomas Hastings, arquiteto, estudo para o portal de um prédio de escritórios. Reproduzido em Clute, *Drafting Room Practice*
Define o dimensionamento aproximado da estrutura e, com isso, confirma as relações de cheios e vazios lançadas no esboço. Resolve os detalhes construtivos, funcionais e decorativos do projeto. A paginação de piso e teto precisa ser definida aqui, antes de passar para a arte-final.
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4 Épura
Raymond, projeto estrutural para o saguão de um museu. Escola de Belas Artes de Paris 1909–1910
Calcula, confirma e cota as medidas e o traçado exato dos elementos construtivos. Esta etapa só existe em trabalhos de disciplinas técnicas específicas, geralmente acompanhado de memória de cálculo, ou no desenvolvimento de um projeto executivo.
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5 Composição de prancha
Croquis de composição de pranchas em Harbeson, *Study of Architectural Design*
Primeiro passo para fazer a arte-final. Nesta etapa se estabelece a escala definitiva de cada desenho. Por meio de croquis ou colagens, se estuda a disposição de todos eles na(s) prancha(s). O objetivo é reunir um conjunto claro e informativo, equilibrado entre vistas gerais e detalhes.
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6 Arte-final
Henri Deglane, fachada do projeto para o palácio das Belas-Artes de Paris (Petit palais), 1881
Em geral feita com base no estudo preliminar, passa a limpo e renderiza o projeto para entrega à banca examinadora ou ao cliente. A arte-final de um estudo preliminar *não* usa cotas, apenas escala gráfica e eventualmente calungas. Tradicionalmente, é feita a nanquim com cores e sombras em aquarela. Raramente usa perspectiva.

Ordem e lugar

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A arquitetura organiza o ambiente humano por meio da construção. Essa organização não tem a ver com impor uma rigidez geométrica, mas com os princípios de ordem emergente que atendem às expectativas da percepção do ser humano e da socialização nas diferentes culturas. Esse é um processo global de ordenamento que vai da ocupação do território numa região inteira até a escala dos detalhes construtivos. Por isso, a nossa primeira aproximação ao estudo da arquitetura tradicional vai ser observar a produção de ordem emergente nas várias escalas de ocupação do espaço pelas sociedades. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Ambiente

Modelo atualmente vigente da migração do Homo sapiens. Desenho: NordNordWest, 2014{#fig:ooa .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Reconhecer, ocupar e organizar um lugar no mundo. Essa é uma das mais fundamentais razões de ser das comunidades humanas. Por natureza, a nossa espécie tende a ocupar todos os espaços disponíveis na Terra; desde as origens da humanidade, mais de 200 mil anos atrás no leste da África, as nossas tribos têm migrado e se adaptado a todas as regiões e climas do mundo ([@fig:ooa]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

{data-background-video="https://cdn.palazzo.arq.br/arqtrad/processos/olduvai-archaeo.webm" data-background-video-muted="true"}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Por sinal, a interpretação hegemônica sobre a origem do Homo sapiens está em revisão constante. No final do século [XIX]{.smallcaps} e na primeira metade do século [XX]{.smallcaps}, as teorias multirregionais eram dominantes. Essas teorias postulavam que a humanidade moderna evoluiu separadamente em diversas regiões desde a mais remota antiguidade; essas teorias eram usadas para justificar diferenças e hierarquias entre diferentes raças humanas. A partir da década de 1960, a teoria monofilética se tornou dominante; essa teoria também é conhecida como "modelo da origem africana recente" e defende que a nossa espécie se formou somente no leste da África entre 300 e 200 mil anos atrás. No entanto, descobertas arqueológicas e pesquisas genéticas recentes mostram que essa população singular de Homo sapiens assimilou outras espécies humanas ao longo da sua expansão na África, Ásia e Europa. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


Vista da paisagem de savana no parque nacional do Serengeti, Tanzânia. Foto: Harvey Barrison, 2012{#fig:serengeti .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A maneira humana de compreender o ambiente à sua volta e de organizar um lugar nesse ambiente é a chave para a nossa adaptação às condições mais variadas. Essa capacidade vem dos desafios ambientais na paisagem variada e instável nas savanas do leste da África [@buras:2019art], a região de origem do gênero humano ([@fig:serengeti]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A evolução biológica transformou a visão no nosso sentido dominante, mas também nos deu a capacidade de reconhecer padrões no espaço e de guardar esses padrões na memória, para além do nosso campo de visão imediato. Ela nos condicionou a procurar lugares altos e protegidos, como a linha de cumeada do vale do Rift, que é chamado com razão de "berço da humanidade" ([@fig:rift]). A ocupação da linha de cumeada oferece uma posição de reconhecimento da paisagem e de controle sobre o território ([@fig:olduvai]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: full Vista panorâmica da garganta do Olduvai, vale do Rift, norte da Tanzânia. Foto: Noel Feans, 2009{#fig:rift} :::

Percursos ## {data-background-video="https://cdn.palazzo.arq.br/arqtrad/processos/olduvai-landscape.webm" data-background-video-muted="true" data-background-video-loop="true"}

::: full Garganta do Olduvai. Filme: David Gutiérrez e Ignacio Zapico, 2016{#fig:olduvai .slide-bg} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A linha de cumeada é um percurso eficiente para as pessoas se orientarem e controlarem o território amplo que a comunidade precisa explorar para o seu sustento. Só que o cume do relevo é muito exposto e longe da água. Por isso, as comunidades procuram controlar os percursos de cumeada principais do território, mas elas estabelecem os seus assentamentos num nível mais baixo, nas cumeadas secundárias [@strappa:2013lettura]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Alguns dos vestígios arqueológicos mais antigos de habitações humanas ocupam essa posição na cumeada secundária. Essa tendência se intensificou a partir do paleolítico superior, o período mais recente do que se chama informalmente de "idade da pedra lascada" ou ainda de "idade das cavernas" ([@fig:bhimbetka]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Pinturas rupestres no abrigo de Bhimbetka, 10 mil anos atrás, atual Madhya Pradesh, Índia. Foto: PranjalG431, 2016{#fig:bhimbetka .outset}

Sítios

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O paleolítico não é um recorte cronológico propriamente dito, mas um indicador de tecnologias e modos de vida em diferentes sociedades, algumas delas vigentes até hoje. As comunidades do paleolítico superior costumam ter entre 50 e 500 membros. Elas tendem a viver de modo mais ou menos sedentário, isto é, em povoações permanentes num mesmo lugar durante no mínimo uma estação e até no máximo alguns anos. Isso implica uma escolha premeditada e muito cuidadosa do sítio onde a povoação vai se estabelecer. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: full Kostyonki, Rússia. Fonte: Google Earth{#fig:kostyonki-google} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes No sítio de Kostyonki, no atual sudoeste da Rússia, o rio Don corre de norte a sul formando um vale de meandros com mais ou menos 2 quilômetros de largura. As encostas em volta do vale são suaves, mas sulcadas pela erosão de dezenas de riachos afluentes do rio Don. As linhas de cumeada principais seguem paralelas ao rio, que corre do norte para o sul, a uma distância de 2 a 3 quilômetros da borda do vale. [@fig:kostyonki-google] ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Entre as gargantas dos afluentes, uma série de linhas de cumeada secundárias se ramifica partir da linha de cumeada principal. 14 mil anos atrás, as comunidades do paleolítico superior estabeleceram os seus acampamentos perto do final dessas cumeadas secundárias, logo acima do vale ([@fig:kostyonki-model]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Maquete do sítio no museu arqueológico de Kostyonki. Foto: Eva Tutin, 2014{#fig:kostyonki-model .outset}

::: align-right Localização no contexto das sociedades pré-históricas com habitações semienterradas{#fig:kostyonki-loc .nobg .overlay-slide} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Cada acampamento era formado por algumas cabanas alongadas [@grigorev:1967new8; @jarzombek:2013architecture, 23]. A implantação no final das cumeadas secundárias dava um certo grau de proteção e de controle visual sobre todo o vale. Ao mesmo tempo, os acampamentos não eram longe da água e dos campos de caça e coleta no fundo do vale ([@fig:kostyonki-site]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: full Sítio arqueológico de Kostyonki no vale do rio Don, sudoeste da Rússia, ocupação c. 14.000 a.p. Desenho com base em Jarzombek (2013) e Grigor'ev (1967), curvas de nível a cada 5 metros. Linha tracejada grossa: percurso estruturante de cumeada; linha tracejada fina: percursos de cumeada secundários; linha pontilhada: percurso de contra-cumeada{#fig:kostyonki-site .slide-bg} :::

{data-background-transition="fade-in slide-out" data-background-image="https://hcommons.org/app/uploads/sites/1001018/2021/06/kostyonki-osm.jpg"}

::: full Kostyonki na atualidade. Mapa de base: OpenStreetMap{#fig:kostyonki-osm .slide-bg} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A organização do território pelos primeiros habitantes humanos no paleolítico superior não era simplesmente uma resposta de circunstância às necessidades particulares do modo de vida caçador--coletor. Essa organização persiste e se consolida ao longo dos milênios. A rodovia que passa perto de Kostyonki ainda segue o mesmo percurso pela linha de cumeada principal, e a cidade moderna ocupa a mesma área no sopé das cumeadas secundárias ([@fig:kostyonki-osm]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes No sul da Inglaterra, o Ridgeway ([@fig:ridgeway]) é um percurso de cumeada pré-histórico que continuou a ser o principal eixo de referência e circulação pelo menos até a construção das estradas romanas no século I d.C. Hoje em dia, é uma trilha de caminhada bastante popular. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Ridgeway, um percurso estruturante de cumeada no sul da Inglaterra em uso contínuo desde o Neolítico (c. 3000 a.C.). Celtic Trails{#fig:ridgeway .outset}


::: align-right Estruturação territorial na Itália da Idade do Bronze, segundo Strappa{#fig:bronzo} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Já em regiões muito montanhosas, como a Itália, os percursos de cumeada secundários tendem a se alongar muito. Um desses percursos secundários termina nas colinas que formam o sítio de Roma ([@fig:bronzo]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Territórios

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Na sequência, a implantação do assentamento determina um raio de ação da comunidade. Ou melhor, vários raios de ação, segundo as várias necessidades --- caça, coleta, aquisição de matéria-prima para ferramentas e gestão de resíduos, por exemplo. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Esses raios de ação foram conceituados nas décadas de 1960 a 80 pelo arqueólogo americano Lewis Binford [@binford:1982archaeology1]. Os raios de ação diferenciados da coleta cotidiana, por um lado, e das expedições de caça que duram vários dias, por outro, definem um zoneamento econômico do território ([@fig:binford1; @fig:binford2]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Esquema do controle do território por um assentamento caçador--coletor, segundo Binford (1982): zoneamento e alcance de um assentamento semipermanente{#fig:binford1 .line}


Esquema do controle do território por um assentamento caçador--coletor, segundo Binford (1982): territorialidade e sucessão de assentamentos semipermanentes{#fig:binford2 .line .outset}

Escolha do sítio

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A escolha do sítio, como vimos, é deliberada. Ela se repete em praticamente todas as implantações de territórios em sociedades que são, pelo menos em parte, caçadoras e coletoras. Os sítios privilegiados por caçadores--coletores, por sua vez, continuam sendo relevantes para sociedades que estabelecem assentamentos permanentes e praticam manejo florestal intensivo ou agricultura. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: align-right Área Kuikuro do alto Xingu indicando sítios arqueológicos c. 1250--1450, segundo Heckenberger (2003). Círculos com estrela: povoações fortificadas e com terreiro; círculos pontuados: povoações com terreiro; pontos: aldeias{#fig:kuikuro .line} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Esse é o caso do território kuikuro no alto rio Xingu desde o século [XIII]{.smallcaps} [@heckenberger:2003amazonia301]. Nos vestígios arqueológicos mais antigos, as povoações dominantes se encontravam distribuídas a distâncias regulares, com povoações menores entre elas ([@fig:kuikuro]). O sistema de povoações era estruturado por caminhos largos nas linhas de cumeada. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O teko'á é o território imediato controlado por uma aldeia guarani ([@fig:tekoa]). A aldeia é estabelecida no final da cumeada secundária, perto da água mas fora do alcance das cheias do rio. Ela controla um perímetro de lavoura e de floresta manejada no seu entorno imediato [@araujo:2016logica10; @soares:1997guarani]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: align-right Diagrama do teko'á guarani, por Araujo de Souza et al. (2016){#fig:tekoa} :::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Os vários teko'á que formam uma aliança política são organizados em volta de percursos estruturantes nas cumeadas do terreno, entre os rios maiores ([@fig:guara]). Esse território político é chamado de guará. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Diagrama territorial do Guará, por Araujo de Souza et al. (2016){#fig:guara}


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {#fig:kemp}

![aldeias igualitárias](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/01/kemp-033a.png){#fig:kempA .line .fragment .fade-out .current-visible} ![vilas agrárias](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/01/kemp-033b.png){#fig:kempB .line .fragment .current-visible} ![cidades-estado emergentes](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/01/kemp-033c.png){#fig:kempC .line .fragment .current-visible}

Diagrama da formação de cidades-estado no Egito neolítico, segundo Kemp ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A implantação de povoações na extremidade das cumeadas secundárias permite o controle visual e estratégico de um território bastante amplo. Com o desenvolvimento da agricultura em várias regiões do mundo, essas povoações se adensam. Então, o senso intuitivo de um território controlado por cada comunidade vai se transformando no desenho de fronteiras mais ou menos estáveis entre cidades-estado [@kemp:1989ancient]. Isto é, a definição institucionalizada do território vem antes de uma hierarquização social e política muito pronunciada ([@fig:kemp]). Essa territorialidade é uma característica fundamental do processo de urbanização. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Conclusão

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Todas as escalas de produção do ambiente tradicional são organizadas à semelhança do território, em estágios sucessivos de ocupação e preenchimento do espaço. A organização do território segue, predominantemente, as formas orgânicas da topografia e vegetação existentes. Quanto mais descemos dessa escala do território para a de assentamentos, construções e detalhes, mais o uso de traçados reguladores e proporções ganha importância. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Preferência temporal

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Até aqui, falamos de dois aspectos gerais da arquitetura tradicional: a organização do espaço e as proporções como instrumento do processo construtivo. Esses aspectos são ainda bastante abstratos e não passam, afinal, de princípios gerais que sequer nos ajudam a distinguir entre arquitetura tradicional e arquitetura moderna. Para fazer essa distinção, nós temos que olhar para o consumo de energia na cadeia produtiva e como esse consumo influencia a gestão do tempo em diferentes sociedades. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Preferência temporal e preferência local

::: align-right Arquitetura do pico do petróleo. Léon Krier, 2008{#fig:krier-oil .line} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A arquitetura tradicional consome muito trabalho manual e um pouco do combustível disponível na natureza --- sobretudo água e fogo de lenha. Já a arquitetura moderna usa uma cadeia de usinas, máquinas e instalações movidas predominantemente a combustíveis fósseis, e em contrapartida poupam trabalho manual ([@fig:krier-oil]). Essa distinção vai resultar em atitudes diferentes, por um lado, quanto à vida útil das construções no tempo e, por outro lado, quanto à relação dessas mesmas construções com o clima e o sítio físico. As diferenças de atitude com respeito ao tempo são conhecidas, na ciência econômica, como preferência temporal. Já as diferenças de atitude com respeito ao lugar não têm propriamente um nome, mas para efeito de comparação vamos chamá-las de preferência local. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: align-right Barnabas Calder. Foto: Helen @ Gingerbread Design{#fig:calder-trombine .overlay-slide} :::

Capa do livro © Pelican Books, 2021{#fig:calder-book}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O arquiteto britânico Barnabas Calder, no seu livro recente Arquitetura da pré-história à urgência climática ([@fig:calder-trombine; @fig:calder-book]), defende que a capacidade de gerar e consumir energia foi um dos fatores preponderantes nas transformações nos modos de construir ao longo da história [@calder:2021architecture]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Assim como todo o nosso modo de vida contemporâneo, a arquitetura moderna é uma indústria de altíssimo consumo de energia. Duas revoluções energéticas cruciais aconteceram nos últimos trezentos anos: primeiro, com a Revolução Industrial, a força de trabalho manual e a energia diretamente fornecida pela natureza ([@fig:molens]) foram substituídas por máquinas movidas a combustíveis fósseis; segundo, desde o final do século [XIX]{.smallcaps}, a necessidade de construir edifícios adaptados ao clima foi substituída pela capacidade de consumir energia para aquecer e refrigerar qualquer tipo de espaço em qualquer clima. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Moinhos de vento em Elshout, Países Baixos, 1927. Acervo Instituto Neerlandês do Som e Imagem{#fig:molens .r-stretch .outset}


Usina nuclear de Temelin, Tchéquia. Filmagem: R. Kocman, 2019{#fig:temelin .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A capacidade de gerar e consumir qualquer quantidade de energia que se faça necessária --- e que seja economicamente viável --- é o que caracteriza as sociedades industrializadas modernas. Nessas sociedades, a energia pode ser extraída do ambiente em quantidades quase ilimitadas. A nossa energia é gerada a partir de fontes fósseis, como o carvão ou o petróleo, atômicas ([@fig:temelin]) ou renováveis, como a eletricidade produzida em turbinas hidráulicas e eólicas ou em painéis fotovoltaicos. Essa energia industrial, por assim dizer, é relativamente barata, e em proporção a isso, a força de trabalho manual acaba por se tornar relativamente cara.

Na sociedade industrial, portanto, a produção pode, em geral, ser ampliada conforme a demanda. É verdade que a construção civil tem um gargalo de longo prazo, que é a quantidade de arquitetos, engenheiros e operários qualificados que estão ativos no mercado. Ainda assim, mesmo a indústria da construção tem uma certa flexibilidade para acelerar a produção sempre que existir uma demanda correspondente. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Em contraste com a nossa sociedade industrial, nas sociedades tradicionais ou pré-industriais, a energia que pode ser extraída do ambiente é bastante limitada [@calder:2021architecture]. O vento e a correnteza dos rios podem até mover moinhos ([@fig:arbesbach]), mas não podem, por exemplo, ser escalados o suficiente para mecanizar a produção de mais moinhos. O calor e o vapor que podem ser gerados a partir da queima de madeira, por outro lado, são diretamente limitados pela superfície de florestas que uma comunidade é capaz de manejar na prática e no longo prazo, além do que, a própria possibilidade de converter calor e vapor em trabalho é muito limitada quando não se tem acesso a materiais industrializados, como o aço. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Martelo de forja movido por um moinho a água em Arbesbach, Áustria, ativo desde 1802. Filmagem: H. Raab, 2009{#fig:arbesbach .outset}

Durabilidade da arquitetura

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Onde for custoso gerar energia a partir do ambiente, o trabalho vai ser proporcionalmente mais barato. Isso significa que compensa usar a força bruta, humana ou animal, em várias tarefas que, nas sociedades industriais, tendem a ser mecanizadas. Mas isso implica, também, que o trabalho artesanal especializado é mais acessível e difundido do que numa economia baseada na indústria de massa.

Ao contrário das máquinas, que podem ser produzidas em escala para atender a qualquer demanda, o trabalho humano é limitado pela população local e, mais ainda, pela capacitação técnica dos profissionais especializados. Ou seja, a produção industrial pode ser ampliada tanto quanto os recursos econômicos o permitirem; já a produção artesanal tem uma capacidade mais ou menos fixa para cada comunidade.

Essa capacidade produtiva fixa faz com que a variável dependente na construção tradicional seja o tempo. O tempo que se leva para construir um edifício tradicional tende a ser proporcional ao seu tamanho e ao refinamento da construção. Portanto, o volume e a complexidade das construções que uma sociedade vai realizar depende em grande parte do tempo de trabalho que essa sociedade quer investir nas suas construções. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O conceito de "preferência temporal" é usado em várias ciências sociais para falar sobre a atitude das pessoas com respeito a ações que dependem da passagem do tempo. Na psicologia cognitiva, a "recompensa adiada", ou seja, a disposição em abrir mão de uma gratificação imediata em prol de um benefício maior no longo prazo, é considerada como um estágio no desenvolvimento mental da criança e às vezes como um sinal de inteligência em outros animais [@carvalho:2010comportamento23; @miller:2020delayed23; @beran:2018self-control28]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Para além dessa perspectiva centrada no comportamento do indivíduo, o conceito de preferência temporal é especialmente importante na análise econômica de processos na escala da sociedade como um todo [@frederick:2002time40], inclusive da construção. Para comunidades seminômades que vivem em regiões onde a matéria-prima para a construção de abrigos é abundante, não faz sentido investir na complexidade nem na durabilidade das suas construções. As aldeias da etnia Bagyeli, na África equatorial ([@fig:bagyeli]), portanto, têm uma estrutura bastante engenhosa mas muito rápida de se erguer. Elas são feitas para durarem alguns meses e a aldeia pode ser simplesmente abandonada depois desse tempo, permitindo a regeneração da floresta no local [@jarzombek:2013architecture]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Cabana do povo Bagyeli, África equatorial. Foto: Nadnad30, 2015{#fig:bagyeli .outset}


Aldeia nas planícies da América do Norte, c. finais do século [XIX]{.smallcaps}. Acervo Wellcome collection{#fig:wellcome .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Pelo contrário, sociedades seminômades que vivem em regiões onde a matéria-prima para os seus abrigos é escassa tendem a investir muito tempo e trabalho para refinar habitações leves e portáteis. É o caso de muitos povos que vivem em estepes, como as diversas etnias da Sibéria e da Mongólia, assim como os povos das planícies da América do Norte. [@fig:wellcome] ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Transmissão entre gerações

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Sociedades totalmente agrárias e sedentárias tendem a investir ainda mais tempo e trabalho nas suas construções, ou seja, a terem uma preferência temporal baixa --- elas constroem para o longo prazo. Apesar de terem existido comunidades de caçadores-coletores que construíram habitações permanentes e até mesmo arquitetura monumental [@dietrich:2019cereal14], esse tipo de produção é mais característico de comunidades que se organizam em torno de um planejamento para conservar ou mesmo multiplicar o valor dos ativos no longo prazo [@galor:2016agricultural106].

Sempre que uma sociedade produz o seu ambiente construído com uma preferência temporal baixa, existe alguma forma de propriedade privada e de transmissão da casa familiar por herança. A preferência pelo longo prazo implica que se vai dedicar um esforço considerável para construir não só os grandes monumentos representativos do poder político e religioso, mas até as moradias da população de todas as classes sociais. Construir uma casa que vai ficar de pé durante séculos é, portanto, investir não só no conforto imediato, mas sobretudo na qualidade de vida futura dos filhos e netos. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: align-right Gaston Bachelard. Acervo do Arquivo Nacional dos Países Baixos{#fig:bachelard} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Outra consequência da arquitetura com preferência temporal de longo prazo é uma grande estabilidade do ambiente construído que cada geração vivencia. Como os edifícios duram muito, a paisagem urbana e rural muda pouco durante a vida de cada pessoa. A identificação afetiva e cultural com as paisagens que parecem ter existido desde sempre é conhecida como topofilia. Esse é um conceito que foi cunhado na literatura pós-romântica, já perto da metade do século [XX]{.smallcaps}; ela passou a ser usada no contexto da arquitetura com o pós-modernismo, na segunda metade do século, e sobretudo a partir da publicação dos livros Poética do espaço, pelo filósofo francês Gaston Bachelard (@fig:bachelard) [@bachelard:2008poetica], e Topofilia, pelo geógrafo americano Yi-Fu Tuan ([@fig:tuan]) [@tuan:1980topofilia]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: align-right Yi-Fu Tuan{#fig:tuan} :::

Responsabilidade ambiental


::: align-right Léon Krier, Edifícios (da Universidade de Yale) --- idade e primeira campanha significativa de reformas, 1990{#fig:krier-1990 .line} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Mas, se construir com preferência temporal baixa é característica de sociedades sedentárias e com sistemas de propriedade privada, o que aconteceu com a arquitetura depois da Revolução Industrial? Não é nenhum segredo que a vida útil dos edifícios não para de cair ([@fig:krier-1990]), mesmo que a indústria venha desenvolvendo materiais com desempenhos cada vez melhores (pelo menos no papel). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A qualidade dos materiais industrializados é uma das chaves para compreendermos esse processo. Como já vimos, a disponibilidade de energia nas sociedades industriais é incomparavelmente maior do que a das sociedades agrárias e artesanais. Na arquitetura, isso quer dizer que as construções produzidas pela mão dos artesãos foram substituídas por montagens cada vez mais mecanizadas de componentes até certo ponto industrializados ([@fig:tecla]) --- o fato de que as construções são "menos" industrializadas do que carros ou máquinas de raios X não importa tanto, a questão é a tendência. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Impressão [3D]{.smallcaps} de uma casa "sustentável" na Itália, 2021. Projeto: [WASP]{.smallcaps} engenharia e Mario Cucinella Arquitetos. Filmagem: Alfredo Milano{#fig:tecla}


::: align-right Léon Krier, custo de construção e custo de manutenção comparados{#fig:krier-maintenance .line} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Ora, mas se a construção está cada vez mais industrializada, por que ela dura menos? Justamente porque uma indústria capaz de fabricar qualquer quantidade de produtos em qualquer tempo tende a assumir uma preferência temporal alta. Se a sociedade industrial contemporânea é capaz de produzir muito mais metros quadrados de construção em muito menos tempo, a preocupação com a manutenção acaba sendo secundária ([@fig:krier-maintenance]). O ciclo de financiamento do mercado imobiliário atual é baseado na rentabilidade de curto prazo. Conservar os ativos imobiliários no longo prazo não é um fator determinante na organização da cadeia produtiva. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: align-right Emissões de CO2 da cadeia produtiva da construção, segundo Victoria Luise Schulz-Daubas, 2021{#fig:schulz} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes E onde entra o discurso da sustentabilidade nessa lógica de preferência temporal alta? Bom, os componentes de uma construção têm desempenho certificado quando saem da fábrica, mas o tempo pelo qual eles mantêm esse desempenho parece ser sempre superestimado. Por causa disso, mesmo com todo o discurso da sustentabilidade que vem se impondo desde a década de 1970, as emissões de CO2 da cadeia produtiva da construção civil estão crescendo cada vez mais rápido ([@fig:schulz]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Consequências econômicas

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes É claro que essa aceleração contínua da produção industrial e do descarte de produtos industrializados tem consequências, especialmente quando esses produtos são edifícios cada vez maiores. E eu não estou nem falando do passivo ambiental genérico dessa gigantesca pegada de carbono [@keong:2021introduction]. Não, as pessoas já estão começando a sentir um baque econômico mesmo; a crise imobiliária de 2008 foi só um solavanco especialmente forte numa tendência mais ampla de declínio na qualidade do universo habitacional industrializado. No final do século [XX]{.smallcaps} e início do [XXI]{.smallcaps}, várias nações ocidentais chegaram a um ponto inédito, desde o ciclo de crescimento econômico que começou com a Revolução Industrial, em que os filhos vão ter menos riqueza acumulada do que os seus próprios pais.

A preferência temporal alta da construção moderna, portanto, resulta numa arquitetura com valor de consumo imediato --- tanto porque essa arquitetura é possível graças ao aporte de energia da indústria, quanto porque a lógica de financiamento contemporânea favorece esse modelo de rentabilidade no curto prazo. O ônus desse modelo, por outro lado, é despejado sobre o meio ambiente, mas também sobre as gerações futuras. Por isso, cabe a reflexão: não será possível, e mesmo necessário, para lidar com a crise climática e a crise de declínio no patrimônio das gerações futuras, retornar para uma arquitetura de baixa preferência temporal? Uma arquitetura produzida lentamente, mas que volte a durar séculos? ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Alegoria da cabana primitiva

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Nos tratados de arquitetura, o mito de origem da construção é apresentado como uma alegoria da condição humana em geral e do ofício da arquitetura em particular. Essa origem sempre parte de uma comunidade ou de um indivíduo que aprende a imitar o funcionamento da Natureza para desenvolver uma técnica construtiva. A matéria-prima é a justificativa mais adequada para uma taxonomia da tipologia construtiva porque as características dos materiais são determinantes para as propriedades dos sistemas construtivos. Nessa taxonomia, a madeira é o material de construção por excelência, e a cabana primitiva é a sua expressão mitológica. O mito da cabana primitiva aparece em três versões famosas, que vamos analisar junto com o registro arqueológico. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes As árvores são o material de construção por excelência. Todas as espécies de hominídeos, dos orangotangos ([@fig:orang]) aos gorilas, chimpanzés ([@fig:chimp]) e humanos, usam as árvores como material e, eventualmente, suporte para construir os seus abrigos. Isso indica que a prática de construir com galhos de árvores pode remontar a até 10 milhões atrás, ao último ancestral comum dos hominídeos [@fruth:2017great]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: align-right Orangotango construindo ninho em Bornéu. Foto: John Fuller, 2013  {#fig:orang} :::


Chimpanzé no seu ninho na Nigéria. Foto: Cyril Russo, Minden Pictures / National Geographic, 2018  {#fig:chimp}

::: align-right Reconstituição dos abrigos de Terra Amata, 380.000 a.p. Foto: Véronique Pagnier, 2011{#fig:terra-amata .slide-bg} :::


Reconstituição de tenda em ossos e peles de mamute de Mezhyrich, Ucrânia, 15.000 a.p., no Museu Nacional de Tóquio Foto: Momotarou2012, 2013{#fig:mezhyrich}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Entre os humanos, os vestígios mais antigos de abrigos podem ter de 15 a 380 mil anos ([@fig:terra-amata; @fig:mezhyrich]). A espécie humana é a única entre os primatas a usar abrigos coletivos, e também a única a construir uma cobertura completa sobre o abrigo. Hoje em dia, todas as comunidades humanas, mesmo as caçadoras-coletoras, reutilizam os mesmos abrigos por, no mínimo, alguns dias a fio [@venkataraman:2017hunter-gatherer114]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Além disso, os nossos abrigos muitas vezes são construídos com algum objetivo social, funcional ou cultural que não a proteção simples e imediata do corpo humano. Em vários modos de vida vigentes até hoje, tanto de sociedades caçadoras-coletoras quanto de comunidade pastoris e agrárias, é bastante comum as pessoas trabalharem e mesmo descansarem ao relento ([@fig:gauchos]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: full Jean-Baptiste Henri Durand-Brager, Gaúchos preparando mate (acampamento do exército de Juan Manuel de Rosas). L'Illustration [VII]{.smallcaps} (177), 1846{#fig:gauchos} :::

Abrigo e comportamento simbólico

Comunidade San em volta do lar central de uma aldeia. Foto: Kgara Kevin Rack, 2017{#fig:san .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Nesses casos, as construções servem como depósitos utilitários ou ainda como suportes simbólicos para as identidades familiares dentro da comunidade. Em suma, o abrigo humano tradicional sempre é um lar no sentido cultural da palavra.

Esse é o caso nas aldeias dos povos San, no sul da África, onde cada casa pertence a uma família nuclear ([@fig:san]). A posição da cabana serve para estabelecer as relações entre famílias dentro da aldeia, mas a construção não é usada nem para as atividades cotidianas e nem mesmo para dormir [@jarzombek:2013architecture]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Esse comportamento social e simbólico contrasta com o dos outros hominídeos, que quase sempre constroem um novo abrigo a cada noite, e usam esse abrigo exclusivamente para repouso de um único indivíduo. [@fruth:2017great]. A diferença entre a mobilidade da maioria dos hominídeos em todo o seu território e o apego dos humanos a um sítio central só foi confirmada no século [XX]{.smallcaps}, mas ela está na base de mitos de origem da arquitetura, como a alegoria da cabana primitiva segundo Vitrúvio. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O grau zero da arquitetura representado pela estrutura mais simples possível em madeira comparece num tipo peculiar de construção da cultura Jōmon. Essa construção é chamada simplesmente de estrutura com seis pilares, e comparece no sítio arqueológico de Sannai Maruyama, no extremo norte da ilha de Honxu (@fig:sannai-site) [@jarzombek:2013architecture, 152-158]. Não é possível determinar, hoje em dia, a função e a configuração precisa dessas estruturas. A reconstituição executada no final do século [XX]{.smallcaps} ([@fig:sannai; @fig:6pillar]) é uma conjetura baseada na posição das fundações e nos vestígios de madeira preservados graças ao terreno pantanoso do local. A estrutura dessas construções é inteiramente feita em toras e troncos roliços de carvalho; todas as construções eram orientadas aproximadamente na direção leste--oeste. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::: {#fig:sannai-site .columns .outset} ::: {.column width=50%} Situação no território das sociedades pré-históricas que construíram habitações semienterradas{#fig:sannai-globe .nobg} ::: ::: {.column width=50%} Locação junto à baía de Mutsu, atual município de Aomori, Japão{#fig:sannai-mutsu} ::: Esquema do sítio arqueológico de Sannai Maruyama, cultura Jōmon, 3900--2300 a.C. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: full Corte do sítio reconstituído de Sannai-Maruyama{#fig:sannai-sec} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


Vista parcial do sítio arqueológico de Sannai Maruyama, reconstituição 1997--2002. Foto: 663highland, 2014{#fig:sannai .outset}


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.columns #fig:6pillar .outset} ::: {.column width=50%} [Koike]{.smallcaps} Takashi, 2008{#fig:6pillarA} ::: ::: {.column width=50%} [Iwanami]{.smallcaps} Riku, 2015{#fig:6pillarB} ::: Reconstituição de uma estrutura com seis pilares, sítio arqueológico de Sannai Maruyama, cultura Jōmon, c. 2600 a.C. Fotos: ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A alegoria da cabana primitiva é um expediente para enfatizar o quanto a arquitetura tradicional é uma expressão direta da construção. A cabana primitiva não tem necessariamente a ver com alguma cultura considerada "primitiva" em particular, e sim com o conceito de uma construção reduzida às suas mínimas necessidades. Ela é sempre pensada como uma montagem simples e racional de elementos em madeira. Por isso, o estudo de uma cabana primitiva qualquer é uma boa porta de entrada para a prática da arquitetura tradicional. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Arquitetura e sociedade

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Vitrúvio [@vitruvio:2007tratado, II, i] especulava que o domínio sobre o fogo permitiu aos homens antigos deixarem de viver como "animais selvagens" e passarem a se organizar em sociedade. O relato vitruviano é o tema de uma série de pinturas de Piero di Cosimo no final do século [XV]{.smallcaps} ([@fig:cosimo-hunt]). A construção de abrigos (@fig:cosimo-vulcan) era, para Vitrúvio, um trabalho necessariamente coletivo e que, portanto, só poderia existir em volta do lar --- da fogueira familiar ou comunitária. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: full Piero di Cosimo, Cena de caçada, c. 1494--1500, têmpera e óleo sobre madeira. Metropolitan Museum of Art  {#fig:cosimo-hunt} :::


Piero di Cosimo, Vulcano e Éolo, c. 1490, têmpera e óleo sobre tela. National Gallery of Canada  {#fig:cosimo-vulcan .outset}


::: align-right Charles Eisen, desenhista e gravurista, alegoria da cabana primitiva para a 2.ª edição do Essai sur l'architecture de Marc-Antoine Laugier, 1755{#fig:laugier} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A origem social da construção foi sendo esquecida aos poucos pelos tratadistas do Renascimento, até ser completamente invertida em 1753 pelo padre jesuíta francês e teórico da arquitetura Marc-Antoine Laugier ([@fig:laugier]). O mito da cabana primitiva, na versão de Laugier, relata o raciocínio individual de um homem que tem a intuição de construir observando as árvores [@laugier:1753essai]. Só depois da construção solitária é que se forma uma comunidade para usufruir do abrigo. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Arquitetura e racionalismo

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A diferença entre o mito da cabana primitiva que Vitrúvio contou no século [I]{.smallcaps} a.C. e o mesmo mito na versão de Laugier, no século [XVIII]{.smallcaps}, é a diferença entre o conceito tradicional de sociedade, vigente na Antiguidade romana, e o individualismo moderno, que se manifesta primeiro no Iluminismo filosófico e político, e mais adiante no Romantismo artístico. Laugier era um pensador iluminista justamente porque ele partilhava o ideal de primazia do indivíduo com outros autores da sua época, como Rousseau e Voltaire, que aparece aqui sendo celebrado num salão elegante ([@fig:salon]). Esses autores consideravam que a razão é uma faculdade inata e imutável da humanidade --- desde que ela pudesse ser exercida livremente, isto é, em caráter estritamente individual. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Anicet Charles Gabriel Lemonnier, Leitura da tragédia « L'orpheline de la Chine », de Voltaire, no salão de Madame Geoffrin, óleo sobre tela de 1812{#fig:salon}


::: full Leo von Klenze, Templo da Concórdia em Agrigento, 1857 {#fig:klenze-concordia} :::


Germain Boffrand, salão oval da princesa, hôtel de Soubise, Paris, década de 1730. Foto: NonOmnisMoriar, 2012{#fig:soubise .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A sequência do argumento de Laugier deixa clara a sua semelhança com a alegoria do "bom selvagem" de Rousseau: segundo Laugier, a arquitetura atinge o seu auge pouco tempo depois da época da cabana primitiva ([@fig:klenze-concordia]), na Grécia antiga (no século [XVIII]{.smallcaps} a cronologia da pré-história e mesmo a do Mediterrâneo antigo ainda não estavam muito bem estabelecidas). Depois disso, a arquitetura degenera pouco a pouco por força de hábitos adquiridos e dos vícios introduzidos pelas convenções sociais [@laugier:1753essai]. Para Laugier, o fundo do poço da arquitetura era a "licenciosidade" do barroco e do rococó ([@fig:soubise]). Na prática, Laugier disfarçava uma preferência estética pela clareza visual das colunatas clássicas e neoclássicas como um argumento pela superioridade racional de um retorno às origens da arquitetura. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


Jean-Pierre Houël, Tomada da Bastilha, 1789, aquarela sobre papel{#fig:bastille .outset}


::: align-right Caspar David Friedrich, Andarilho sobre o mar de névoa, 1817{#fig:friedrich} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes As implicações políticas do individualismo iluminista são bem conhecidas, e desembocam na Revolução francesa a partir de 1789, com a tentativa de formar um sistema de governo baseado na igualdade de direitos ([@fig:bastille]). Já as consequências artísticas dessa celebração do individualismo são mais complexas. De uma apologia da razão individual, no neoclassicismo, a arte acabou descambando para uma idolatria da emoção individual no Romantismo ([@fig:friedrich]). Nos dois casos, o momento de maior pureza de um conceito ou sensação é aquele que está na origem, tida como mais autêntica ou espontânea. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O argumento iluminista e romântico ia no sentido oposto ao de Vitrúvio. Para os antigos romanos, a sociabilidade, e especialmente o consenso num meio-termo justo, estavam na origem de todo progresso, e esse progresso sempre seria atingido por uma sequência gradual de refinamentos sucessivos... ou quase sempre ([@fig:caesar]). Vitrúvio não estava elogiando a pureza formal ou conceitual da cabana primitiva: esses são princípios revolucionários e modernos. Em vez disso, Vitrúvio sustentava uma tese tradicional: a de que o trabalho constante, no respeito das convenções sociais, conduz à melhoria contínua dos processos e dos resultados. O ideal romano de um processo social que se desdobra ao longo do tempo vai ser revisitado, e deformado, na segunda metade do século [XIX]{.smallcaps}. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: full Vincenzo Camuccini, A morte de César, 1804--1805{#fig:caesar} :::

Arquitetura e antropologia

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A terceira versão do mito da cabana primitiva foi contada pelo arquiteto alemão Gottfried Semper ([@fig:semper]) num artigo de 1851 intitulado "Os quatro elementos da arquitetura" [@semper:1851vier]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Semper se inspirou numa cabana de índios karib ([@fig:karib]) que ele tinha visto na exposição universal de Londres, aquela do palácio de Cristal [@semper:1860stil]. Como a maioria dos europeus do seu tempo, Semper considerava que uma sociedade dita "primitiva" no século [XIX]{.smallcaps} seria comparável a uma comunidade do passado remoto, nas origens da humanidade. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.columns} ::: {.column width=53%} Gottfried Semper, fotografia anônima de 1865{#fig:semper} ::: ::: {.column width=47%} Cabana dos índios karib em Trinidad e Tobago, apresentada na exposição universal de Londres em 1851 e publicada por Semper em 1860{#fig:karib .line} ::: ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::: full Henri Labrouste, arquiteto, biblioteca Sainte-Geneviève, sala de leitura, Paris, 1842. Foto: Marie-Lan Nguyen, 2011{#fig:bsg} :::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes No século [XIX]{.smallcaps}, esse pressuposto colonialista era perfeitamente compatível com as opiniões modernas e progressistas que Semper tinha sobre outros assuntos (e foi justamente por causa desse progressismo que ele teve que se exilar da Alemanha, e foi parar na Inglaterra na mesma época que os seus compatriotas mais famosos, Marx e Engels). No caso da cabana primitiva, Semper levou o mito das origens às últimas consequências de um modo que não era concebível para Vitrúvio ou Laugier. Isso porque Semper foi contemporâneo do grande ímpeto de construção com estrutura portante em ferro fundido, independente da vedação das paredes, como nas bibliotecas que Henri Labrouste construiu em Paris ([@fig:bsg; @fig:bnf]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

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:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A possibilidade de separar a estrutura da vedação era uma coisa praticamente inédita na arquitetura erudita da Europa pelo menos desde a Grécia arcaica, depois do século [VIII]{.smallcaps} a.C. Foi a realidade tecnológica do esqueleto estrutural moderno que permitiu a Semper pensar a separação conceitual entre estrutura e vedação. E essa separação nos dá dois dos quatro elementos da cabana primitiva na versão de Semper. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Henri Labrouste, arquiteto, Biblioteca nacional da França, sala de leitura principal, 1860. Foto: Émilie Groleau / [INHA]{.smallcaps}, 2017{#fig:bnf .outset .slide-bg}

Os quatro elementos da arquitetura ## {data-background-image="https://i.pinimg.com/originals/ae/0f/ad/ae0fad31b13e85f997d8153f3637e52a.png" data-background-opacity="0.25" data-background-transition="fade-in slide-out"}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Só que esses dois elementos, a realização construtiva da cabana, são secundários para Semper. Assim como Vitrúvio, ele colocava o fogo em primeiro lugar, mas explicitava a sua posição central como o lar que dá origem à habitação primitiva. E esse lar implicava, por sua vez, a organização do espaço como uma plataforma separada do chão. Os quatro elementos de Semper têm, portanto, uma hierarquia clara: ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: incremental

  1. Lar
  2. Plataforma
  3. Estrutura e cobertura
  4. Vedação ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

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:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Os quatro elementos se resumem, no fim das contas, às três partes da arquitetura que já encontramos em Vitrúvio, só que numa ordem diferente: primeiro, vem a organização social do espaço; só depois, a construção vem dar abrigo a essa organização; por último, o espaço e a construção são decorados pela superfície da vedação. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: incremental Utilitas = Lar e Plataforma

: Espaço socialmente organizado

Firmitas = Cobertura

: Construção

Venustas = Vedação

: Beleza e, mais especificamente, decoro ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Essa última parte deriva de um jogo de palavras em alemão, que Semper aproveitou a seu favor (e ele não foi nem o primeiro, nem o último alemão a fazer isso; a etimologia tem essa capacidade de simular alguma verdade profunda). A palavra Wand, que quer dizer parede, é cognata do verbo winden, que significa tecer uma guirlanda ou uma esteira com fibras vegetais. Como a vedação da cabana karib era feita de esteiras de palha, Semper propôs que as artes aplicadas --- angewandte Künste em alemão --- da tecelagem e da decoração de interiores teriam a mesma origem, e portanto que a vedação com paredes seria algo alheio à pura construção. Nisso, ele se aproximava um pouco da posição de Laugier em favor da clareza das colunatas.

As três versões do mito da cabana primitiva --- de Vitrúvio, Laugier e Semper --- respondiam a três buscas totalmente diferentes por um significado da arquitetura que pudesse ser encontrado nas origens do ofício. A evolução histórica era um progresso segundo Vitrúvio e Semper, uma decadência segundo Laugier, mas todos concordariam que se tratava de uma mudança de nível e não de essência. Esse progresso ou decadência se move sempre desde uma solução originária e impessoal de um problema humano geral para uma elaboração tardia, autoconsciente e autoral no ofício erudito da arquitetura. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

![](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/64/Piero_di_Cosimo_-_Vulcano_e_Eolo.jpg/1072px-Piero_di_Cosimo_-_Vulcano_e_Eolo.jpg) ![](https://i.pinimg.com/originals/ff/64/db/ff64db9e8347d7a7458d35fce356ce8d.jpg) ![](https://i.pinimg.com/originals/20/53/c9/2053c9e1c4da02c6425b885d9e24aea5.png){.line}

Cabanas primitivas e modernas

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A correspondência direta e necessária entre o sistema construtivo e a aparência arquitetônica é uma justificativa primordial em muitas teorias da arquitetura, tradicionais ou modernas. Mais ainda, a cabana primordial em madeira é um arquétipo constantemente reatualizado em rituais religiosos de várias culturas do mundo todo. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Um dos casos mais bem documentados é o de rituais xintoístas de fertilidade no Japão; comunidades de fazendeiros constroem cabanas com madeira verde, que são queimadas ao fim da celebração. Essa prática popular foi documentada pelo antropólogo suíço Nold Egenter na segunda metade do século [XX]{.smallcaps} [@egenter:1980bauform]. Ela se assemelha a um ritual mais formalizado que faz parte da sagração de cada imperador do Japão desde o século [VII]{.smallcaps} d.C.: nesse ritual, chamado daijōsai ([@fig:daijogu]), o novo imperador entra numa cabana em madeira construída especialmente para partilhar uma refeição com a deusa do Sol Amaterasu (representada por três objetos sagrados e um pilar também em madeira). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::: full Cabanas rituais diversas no xintoísmo contemporâneo, Japão, registradas por Nold Egenter, 1980{#fig:egenter .line} :::


Daijōgū, cabanas temporárias onde se realizou o daijōsai do imperador Naruhito. Foto: agência Kyodo, novembro de 2019{#fig:daijogu .outset}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Em todas as versões do mito ou do ritual da cabana primitiva, a madeira é o material de construção originário. Além de ser uma obviedade histórica e arqueológica, a madeira enquanto matéria-prima por excelência da construção tem uma utilidade crucial nesse mito: ela se presta a praticamente um único sistema estrutural, o esqueleto arquitravado de pórticos (isto é, pilares e vigas). Ao contrário de uma parede em alvenaria portante, que pode ser decorada com colunas, as estruturas em madeira só com muita dificuldade e desperdício de material conseguem imitar paredes de alvenaria. Com isso, a cabana primitiva em madeira funciona como o arquétipo mais característico da construção tradicional. É a partir desse arquétipo que vamos analisar, na sequência, a construção arquitravada. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Projeto e representação

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Agora que vamos começar um curso de arquitetura tradicional, nós temos que manejar as ferramentas próprias da arquitetura tradicional. Já vimos que a arquitetura moderna é diferente da tradicional no uso de materiais e processos construtivos industrializados. Também vimos como a relação entre tempo e lugar é diferente na visão tradicional e na moderna da arquitetura. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Visualizar a arquitetura

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes É claro que tudo isso diz respeito acima de tudo aos materiais da construção e ao trabalho manual de construir, mas não é só isso. Para fazer arquitetura tradicional, nós temos que visualizar o projeto de um modo que nos faça prestar atenção aos elementos e aos processos construtivos tradicionais, isto é, artesanais. Os instrumentos que nós temos para visualizar a arquitetura, tanto a tradicional quanto a moderna, são os desenhos e as maquetes.

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notice

: Não vamos falar aqui sobre a realidade virtual porque essa forma de visualização é ela própria um produto gerado a partir de desenhos e maquetes. :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Então, no que a visualização da arquitetura tradicional difere da visualização da arquitetura moderna? A principal diferença vem da própria diferença, que já vimos, entre a materialidade da construção tradicional e a abstração da arquitetura moderna.

A composição da arquitetura tradicional quer chamar a atenção para a materialidade da construção --- as dimensões, as texturas e o peso dos materiais. Neste pavilhão do arquiteto contemporâneo Demetri Porphyrios ([@fig:porphyrios]), cada elemento construtivo expressa a força do seu material: colunas esbeltas em madeira, colunas espessas em tijolo; os caibros em madeira têm balanços amplos, já a plataforma em pedra se aproxima da forma estável de uma pirâmide. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Demetri Porphyrios, arquiteto, pavilhão no parque Rockefeller, Nova York, 1992. Foto: Beyond My Ken, 2014{#fig:porphyrios .outset}


Ludwig Mies van der Rohe, arquiteto, pavilhão da Alemanha na exposição universal de Barcelona, 1929 (reconstruído em 1984). Foto: Christian Gänshirt, 2012{#fig:barcelona}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O projeto arquitetônico moderno em geral, pelo contrário, abstrai essa materialidade e tenta fazer com que a construção pareça um conjunto de linhas e superfícies que podem ser manipulados arbitrariamente, talvez até à revelia da lei da gravidade.

No famoso pavilhão de Mies van der Rohe em Barcelona ([@fig:barcelona]), os materiais são trabalhados de modo a quebrar a percepção da solidez construtiva: os pilares são cromados para refletirem a luz e ficarem menos visíveis, os blocos de travertino das divisórias formam uma grelha em vez de uma amarração de alvenaria, e as coberturas são lajes planas e finas que não remetem ao papel normal de um telhado, que é escorrer a água da chuva. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Essa diferença vai se refletir em algumas convenções ou costumes diferentes que seguimos para fazer desenhos arquitetônicos ou construir maquetes de edifícios tradicionais, por mais que as técnicas básicas sejam as mesmas do projeto moderno ([@fig:lalive; @fig:mies-brick]). Vocês vão aprender essas técnicas básicas de desenho e maquete em outras disciplinas, portanto aqui vamos nos concentrar nas particularidades da arquitetura tradicional. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.half .full} Vincent Barré, arquiteto, planta do primeiro andar do hôtel La Live, Paris, segunda metade do século [XVIII]{.smallcaps}. Museu Carnavalet D.14938{#fig:lalive}

Mies van der Rohe, projeto para uma casa de campo em tijolos, 1923{#fig:mies-brick .line} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

{data-visibility="hidden"}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes


::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Projeções lineares e paralelas

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Toda visualização da arquitetura se baseia em como representar um edifício grande e em três dimensões num espaço reduzido e, no caso dos desenhos, em duas dimensões. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Projeção é o ato de se representar um objeto tridimensional em duas dimensões usando um método consistente. As crianças, por exemplo, costumam projetar construções, pessoas e outros objetos sempre mostrando uma vista frontal característica, mesmo quando a rua aparece em planta ([@fig:infantil]). Pode parecer estranho para os adultos, mas é consistente. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Desenho infantil de uma rua com casas, reproduzido por Kmetová e Lehocká{#fig:infantil .outset}


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: full Giuliano da Sangallo (atribuição), Cidade ideal, c. 1480–84, dita Tábua de Baltimore. Walters Art Museum{#fig:baltimore} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Uma das formas mais comuns de projeção hoje em dia é a perspectiva. Essa forma de representar a terceira dimensão no plano do desenho foi inventada várias vezes em diferentes culturas desde a Antiguidade, mas o método mais usado hoje em dia, a perspectiva linear com um ou mais pontos de fuga, foi inventado no início do século [XV]{.smallcaps} na Itália ([@fig:baltimore]). A perspectiva linear é especialmente interessante para dar uma boa percepção volumétrica do espaço, mais até do que dos objetos; o ponto fraco da perspectiva linear, do ponto de vista mais analítico, é que não é possível medir comprimentos reais a partir das linhas oblíquas no desenho. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Outras projeções tratam de representar as três dimensões dos objetos no desenho, só que mantendo alguma consistência nas medidas e na orientação das linhas. Isto é, linhas paralelas entre si na realidade são representadas como paralelas entre si no desenho, em vez de convergirem para um ponto de fuga. Uma das mais usadas na arte tradicional é a projeção cavaleira, que é bastante característica da pintura chinesa ([@fig:qiu-ying]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: full Projeção cavaleira: Qiu Ying, Manhã de primavera no palácio Han, original da primeira metade do século [XVI]{.smallcaps}, cópia da segunda metade do século [XVII]{.smallcaps}. Walters Art Museum{#fig:qiu-ying} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: align-right Projeção axonométrica ou planta oblíqua: ilustração da Lenda de Genji, artista desconhecido do século [XVII]{.smallcaps}. Chester Beatty Library 1038.1{#fig:kiritsubo} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Um método ainda mais consistente de se respeitar medidas de comprimento num desenho é a projeção axonométrica com os eixos cartesianos numa inclinação de 45° entre si. Esse tipo de projeção é bastante comum na pintura japonesa tradicional ([@fig:kiritsubo]) mas também é muito usado no desenho de arquitetura contemporâneo. Ele permite tirar medidas corretas em todos os três eixos dimensionais. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: slide-only Desenho infantil de uma rua com casas, reproduzido por Kmetová e Lehocká ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O importante é entender que todas essas formas de projetar os objetos são convenções, ou seja, costumes. Esses costumes têm a ver tanto com tradições culturais quanto com as necessidades específicas de cada caso no que diz respeito às informações que precisamos extrair dos desenhos. Por exemplo, podemos achar que o desenho infantil da [@fig:infantil] é um modo de representação que nós, adultos, temos que superar. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Mas essa projeção é perfeitamente válida se a nossa intenção for dar uma ideia da paisagem urbana, destacando alguns edifícios principais e mostrando a trama de casas em várias ruas ao mesmo tempo. Foi isso que o engenheiro militar Rocha Fragoso fez no Mappa architectural do Rio de Janeiro que ele publicou em 1874 ([@fig:fragoso]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Planta–elevação: João da Rocha Fragoso, Mappa architectural do Rio de Janeiro, pr. 3, 1874{#fig:fragoso}

Projeções ortográficas

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: align-right Francis D.K. Ching, projeção ortográfica do terceiro diedro{#fig:ching-3diedro .line} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Apesar de existir essa grande variedade de projeções possíveis, a prática da arquitetura em quase todas as sociedades e culturas ao longo da história tende a privilegiar um subconjunto bastante específico de projeções. Essas projeções arquitetônicas são aquelas que talvez não deem uma ideia tão intuitiva e imediata da forma tridimensional, mas elas transmitem informações importantes para o processo construtivo de modo preciso, claro e sistemático. Chamamos a essas projeções de ortográficas porque elas rebatem o volume do objeto em planos ortogonais uns aos outros, usando linhas de projeção perpendiculares a cada um desses planos [@ching:2012desenho] ([@fig:ching-3diedro]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Para desenhar um edifício seguindo as convenções da arquitetura, podemos posicionar os planos ortogonais do lado de fora do edifício, como na [@fig:ching-3diedro]; isso vai gerar elevações, ou vistas verticais do exterior do edifício, e a planta de cobertura, uma vista horizontal tomada de cima. Além desses desenhos, temos duas outras representações muito úteis para a arquitetura, onde os planos atravessam o edifício: a planta ([@fig:ching-plan]), usando um plano horizontal, e o corte ([@fig:ching-corte]), usando um plano vertical. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {#fig:ching-proje .columns} ::: {.column width=42%} planta{#fig:ching-plan .line} ::: ::: {.column width=58%} corte{#fig:ching-corte .line} ::: Francis D.K. Ching, esquema de projeções ortográficas com planos de projeção ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

{data-visibility="hidden"}

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notice--info  Jogo rápido!

: Identifique as projeções paralelas dos desenhos que dão origem à planta e ao corte na @fig:ching-proje.

 Olho vivo!

: Repare como os planos de projeção da planta e do corte estão posicionados de modo a passarem pelos vãos das portas e das janelas. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {#fig:sumer-plan .half .full} casa em Umma, Vorderasiatisches Museum, Berlim{#fig:umma}

templo? [John Rylands Library, Universidade de Manchester [JRL]{.smallcaps} 0930][]{#fig:jrl0930}

Plantas com cotas em blocos de argila, Suméria, c. 2100–2000 a.C. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

[John Rylands Library, Universidade de Manchester [JRL]{.smallcaps} 0930]: https://cdli.ucla.edu/search/search_results.php?SearchMode=Text&ObjectID=P112404

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes A planta é uma das formas de representação mais antigas e difundidas. Qualquer edifício complexo, em qualquer cultura, vai ser representado em planta antes de ser construído. A planta também é um instrumento cadastral muito difundido para documentar edifícios existentes com vários propósitos --- não só para intervenções, mas também, por exemplo, com finalidades administrativas ou fiscais.

Conhecemos plantas de arquitetura datando de mais de 4 mil anos atrás, na antiga Suméria ([@fig:sumer-plan]). Mesmo essas plantas sendo muito esquemáticas, elas mostram uma preocupação com a materialidade da construção: todas as paredes têm espessura, ainda que essas espessuras e os vãos das portas não pareçam muito bem proporcionados ou na escala correta. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Projeto e composição

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O senso de proporção e escala vai ser uma das características mais importantes do desenho arquitetônico tradicional, à medida que ele vai se desenvolvendo e se padronizando na Europa da Idade Média até a Idade Moderna. A escala precisa dos desenhos e a percepção da proporcionalidade entre as partes do edifício são importantes nesse contexto porque a arquitetura tradicional funciona à base de uma composição de elementos tangíveis, que podem ser tanto a matéria física da construção quanto as formas bem definidas dos espaços vazios. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Mas o que é composição? O conceito moderno de projeto faz referência à transformação de requisitos abstratos (programa de necessidades, ideologias) diretamente em forma arquitetônica [@pinon:2006teoria]. Em arquitetura tradicional, em vez de projeto preferimos falar em composição: organizar e modificar formas ou princípios formais preexistentes [@gabriel:2004classical].

Ao longo do tempo, os arquitetos pensaram em muitos sistemas para classificar e usar essas formas; o arquiteto pós-moderno Rob Krier apresenta na @fig:rkrier-basic uma classificação possível baseada nas formas geométricas primárias que dão origem aos volumes. Ao longo deste curso, vamos ver alguns outros modos de classificar os elementos da arquitetura e da composição. Nenhum deles é intrinsecamente mais correto que os outros, mas alguns fazem mais sentido em determinados contextos culturais ou tecnológicos. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::::::::::::::::::::::::::::::::::: {#fig:rkrier-basic .columns .outset} ::: {.column width="49.5%"} tipos primários{#fig:rkrier-basicA .line} ::: ::: {.column width="50.5%"} exemplos históricos{#fig:rkrier-basicB .line} ::: Rob Krier, arquétipos formais em Architectural Composition (1988) ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Método acadêmico de representação

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Sobre o modo de fazer arquitetura tradicional, já vimos que ele se baseia na manipulação de elementos materiais ou espaciais, e que esses elementos precisam ser dispostos com um senso de proporção e escala entre si e com as pessoas que estudam o desenho ou que usam o espaço. No século [XIX]{.smallcaps}, a Escola de Belas-Artes de Paris consolidou um método para projetar e representar a arquitetura que sintetiza esses requisitos num passo a passo prático:

<div class="full">
  {% include feature_row id="beaux-arts" %}
</div>

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.columns .slide-only} ::: {.column width=50%}

Traçado regulador #### {.fragment .fade-in-then-semi-out data-fragment-index="1"}

Esboço #### {.fragment .fade-in-then-semi-out data-fragment-index="2"}

Estudo preliminar #### {.fragment .fade-in-then-semi-out data-fragment-index="3"}

Épura #### {.fragment .fade-in-then-semi-out data-fragment-index="4"}

Composição de prancha(s) #### {.fragment .fade-in-then-semi-out data-fragment-index="5"}

Arte-final (entrega) #### {.fragment .fade-in data-fragment-index="6"}

::: ::: {.column width=50%}

![Traçados reguladores de plantas e elevações, J. François Gabriel](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/06/1080p-gabriel-classical-01.51-01.52-grids.png){.fragment .current-visible data-fragment-index="1"} ![Esboço de uma galeria, Donald M. Kirkpatrick](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/06/harbeson-mdp.39015014100054-seq_27.png){.fragment .current-visible data-fragment-index="2"} ![Estudo para um prédio de escritórios, Carrère *&* Hastings](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/06/1080p-draftingroomprac00clut-0018.png){.fragment .current-visible data-fragment-index="3"} ![Épura da estrutura de um museu, Raymond](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/06/1080p-lesconcoursdarch04ecol_0350.jpg){.fragment .current-visible data-fragment-index="4"} ![Composições de prancha em croquis, Harbeson](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/06/1080p-harbeson-mdp.39015014100054-seq_57-59.png){.fragment .current-visible data-fragment-index="5"} ![Arte-final de projeto de museu de belas-artes, Henri Deglane](https://hcommons.org/app/uploads/sites/1002372/2022/06/1080p-deglane-palais_beaux_arts-1881.jpg){.fragment .current-visible data-fragment-index="6"}
::: ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes No esboço da loggia acima e na composição de prancha abaixo ([@fig:entroncamento]), vemos algumas das características principais da apresentação de desenhos no método acadêmico:

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: align-right Exemplo de composição de prancha vertical com planta, elevação, margem, escala gráfica e título{#fig:entroncamento} ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

  • Desenhos alinhados entre si para facilitar a reconstituição mental da volumetria;
  • Entrada principal do edifício sempre voltada para baixo nas plantas, e para dentro da prancha nos cortes;
  • Escala gráfica posicionada entre os desenhos, para facilitar a referência;
  • Contraste forte entre a hachura dos planos de corte e os vazios dos espaços;
  • Margem da prancha bem assertiva, com espaço generoso para a borda da folha.
  • Carimbo da prancha forma parte da composição. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.columns .slide-only} ::: {.column .incremental width=50%}

  • Desenhos alinhados entre si
  • Entrada principal para baixo nas plantas, e para dentro da prancha nos cortes;
  • Escala gráfica posicionada entre os desenhos
  • Contraste forte entre a hachura dos planos de corte e os vazios dos espaços;
  • Margem da prancha bem assertiva, com espaço generoso
  • Carimbo da prancha forma parte da composição; ::: ::: {.column width=50%} Exemplo de composição de prancha vertical com planta, elevação, margem, escala gráfica e título{style="border: 0.5px solid #000;"} ::: ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

{data-visibility="hidden"}

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes

  • Escala gráfica e orientação do norte
  • Desenhos convencionais
    • Cortes sempre pelo eixo de simetria e passando pelos vãos
    • No mínimo um corte perpendicular à elevação principal, em geral dois cortes
    • Os cortes são tratados como elevações interiores ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Estudo analítico

:::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.half #fig:harbeson-analytique} motivo central para um muro de jardim, por L. Licht{#fig:harbeson-analytiqueA}

templo do Amor, por G. Roth{#fig:harbeson-analytiqueB}

Estudos analíticos reproduzidos em Harbeson, Study of Architectural Design ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes O estudo analítico, por sua vez, tem sido a porta de entrada no estudo do classicismo desde a organização do ensino na Academia de Arquitetura em Paris, no século [XVIII]{.smallcaps}, difundindo-se para o sistema as Escolas de Belas-Artes em dezenas de países, inclusive no Brasil, nos séculos [XIX]{.smallcaps} e [XX]{.smallcaps} ([@fig:harbeson-analytique]). ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: notes Na Escola de Belas-Artes de Paris, no final do século [XIX]{.smallcaps}, o analítico era uma das provas de seleção para o ingresso no curso de Arquitetura [@harbeson:1927study; @guadet:1901elements]. Na do Rio de Janeiro, no começo do século [XX]{.smallcaps}, era um dos primeiros exercícios desenvolvidos pelos alunos ingressantes ([@fig:exemplos]).

Os principais mestres da geração modernista dos anos 1920 --- Le Corbusier, Walter Gropius, Lucio Costa e muitos outros --- estudaram sob alguma influência do método Belas-Artes. Embora eles tenham instituído teorias e sistemas de ensino opostos ao método Belas-Artes, a obra desses arquitetos demonstra a disciplina, o rigor gráfico e a atenção para proporções e detalhes, derivadas dos seus estudos classicistas [@chitham:2005classical]. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: {.columns #fig:exemplos .full} ::: {.column width=52.3%} {#fig:exemplosA} ::: ::: {.column width=47.7%} observe a representação das juntas entre os blocos de pedra{#fig:exemplosB} ::: Exemplos de desenhos analíticos de ordens clássicas, D.W. Bates ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Importância do detalhe e da volumetria

Bibliografia {- .unlisted .allowframebreaks}